A Condição de Ilhéu

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

- o caso de Cabo Verde, visto através dos seus poetas -
Solicitada a escrever sobre a condição de ilhéu, questionei como abordar o assunto? Através de uma revisitação ao passado? Sim, mesmo que nascida e vivendo em ilhas e mais particularizado, numa ilha; ainda que a condição de ilhéu pudesse ser naturalmente parte estruturante do nosso ser ontológico; ainda assim, ao tentar hoje escrever sobre a condição de ilhéu, imaginei-a como algo que se havia passado há muito tempo e situei-a num tempo que já ficou muito muito atrás...algum anacronismo nisto? Talvez.
A noção de um conceito dinâmico e evolutivo ganhou ênfase, no mundo globalizado. Para mim era real a condição (de ilhéu). Tratava-se de  uma singularidade que nos distinguia do habitante continental. E mais verosímil se tornava, e se acentuava  quando reiterada na leitura e no estudo dos textos dos ensaístas, poetas e romancistas cabo-verdianos.
O que tenho agora  como certa é que a percepção da condição de ilhéu alterou-se de tal forma que mesmo a que havia em mim fixada se transformou. Daí que, em sérias dúvidas, terei de recorrer ao “baú de memórias” e dela  retirar algumas  “enferrujadas” pelo tempo.
Vale neste contexto – acompanhada também por uma desperta consciência – dizer que o assunto já não será escrito com estes traços, pela nova geração de cabo-verdianos.  Para eles – com o espectaculoso desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação quase instantâneas, à velocidade de um “clic” tanto inter-ilhas, como com o mundo – essa condição de ilhéu, assim posta como aqui vai, ser-lhes-á eventualmente estranha e arcaica. E provavelmente matéria desconhecida, sobre a qual possivelmente, pararam vez alguma para pensar. Mesmo vivendo numa ilha. Pertence ao passado dos seus ascendentes.  Configurada, pela geração actual de cabo-verdianos, funcionará eventualmente, como uma “arqueologia romântica.”
E assim me quedo nesta exigência que devia ser reflexiva de algo que afinal, apenas conheço  empiricamente.
Apesar de os tempos hoje também serem diferentes em Cabo Verde e mesmo com a globalização a acontecer também nestas pequenas ilhas atlânticas, gostaria de partilhar com o leitor e num pequeno àparte, um mini-inquérito feito meio ao acaso, em encontros de rua, com conhecidos e amigos. Andava eu à procura de pessoas que nunca tivessem saído de Cabo Verde. O que  já vem sendo uma raridade. Seriam elas  as visadas no meu propósito do improvisado inquérito e para quem ainda pudesse subsistir, alguma “réstia” da citada condição do ilhéu ainda viva e ainda palpitante de que pudessem dar testemunho.  Encontrei poucos, já na faixa etária chamada de meia-idade, a quem fiz as seguintes perguntas: “ Já sentiu alguma vez “pesar-lhe” a sua condição de ilhéu? A ilha como um cerco? Como imagina Portugal? E os Estados Unidos?”
Das respostas que considerei com interesse, embora reconheça que nem chegam a constituir-se em amostragem, registo aqui apenas duas. Uma, a de um técnico agrícola, de 59 anos de idade, nunca saiu de Cabo Verde. Sobre a condição de ilhéu, respondeu que durante os anos que viveu (a infância e a adolescência) num povoado perdido nos recessos da ilha do Fogo, de nome Queimadas, onde as novas do mundo só chegavam através da rádio, (para quem a possuía) e do “americano” torna-viagem, com ar próspero e bem vestido. “Aí sim, ali olhava muito para o mar e para a linha do horizonte.” E acrescentou que mesmo as cidades de Mindelo (ilha de S. Vicente) e a da Praia (ilha de Santiago, lhe pareciam distantes, um outro mundo; e que a imagem que tinha dos Estados Unidos da América era “de uma mesa farta cheia de iguarias para todos os paladares. E a comparação continuou: “como nos anos em que chovia bem e as ilhas produziam com abundância.” E Portugal? Como imaginava o país quando jovem? E agora? A resposta não se fez esperar: “Aqui, neste particular, trata-se de um caso sentimental. Permanece na minha imaginação da mesma maneira que antigamente. Porque sentia Portugal e continuo a senti-lo como perto/longe de nós. Tenho lá muitos familares. Sempre pensei que quando tivesse um bom pé-de-meia, haveria de ir conhecer Portugal. Para passear mesmo. Ainda não aconteceu. Mas não perdi fé.”
A segunda, de uma colega minha, professora, de 69 anos, perguntada se antes de ir a Portugal para a Universidade, se se sentiu alguma vez “ilhada.” Respondeu-me: “vivi e cresci na cidade da Praia. Nem conhecia antes de ir para Portugal sequer o interior da ilha de Santiago. Só  adulta, profissional de volta à terra, é que conheci as restantes ilhas. Logo, saí deste pequeno espaço urbano directamente para a então grande Metrópole. Mas mesmo assim nunca havia parado para pensar nisso.Tomei consciência disso, da condição de ilhéu/prisão do mar, por um insignificante episódio. Quando, nos idos 60 do século XX, em Lisboa, partilhava o quarto num Lar de estudante com uma colega moçambicana, que falava orgulhosamente do “tamanhão” do seu país e certa vez provocou-me desta maneira: “Credo! Eu, se vivesse numa ilha como a tua, eu seria uma depressiva. Acabaria por morrer...” Respondi-lhe que nunca  me havia sentido assim na minha terra. Mas, se calhar, não o tinha consciencializado ainda, antes dessa estranha chamada de atenção de que nunca mais me esqueci.” Concluiu a minha colega.
Eis pois, duas brevíssimas ilustrações das conversas havidas a propósito do tema. Mas para melhor situar os  depoimentos dos meus informantes, esclarecerei que eles tiveram lugar, na cidade da Praia, na ilha de Santiago. Tivesse eu tido por exemplo, o ensejo de entrevistar gente nas outras ilhas, e como escolha, a ilha/cidade que é S. Vicente, a qual, ainda hoje, os seus habitantes guardam nostalgicamente, recordações de um passado cosmopolita e mais virado para o mundo largo, dado que a sua cidade portuária, Mindelo, albergou no seu Porto Grande na década de 30, 40 e 50 do século XX, significativo movimento de barcos que cruzavam o atlântico. Mindelo  fora outrora centro da cultura e das artes no Arquipélago.   Era  ao tempo, uma urbe de forte influência “europeia e sul-americana.”  O país de eleição, para a emigração dos mindelenses era a Holanda. Diferentemente das ilhas de Sotavento ( sobretudo, Fogo e Brava) viradas para os Estados Unidos. Logo, as respostas seriam com outras abordagens, espelhando eventualmente uma visão cosmopolitizada que ficou na memória dos mais antigos, colhida, como observou Jorge Barbosa: “(...) nesse ar de outros climas que  trazem os passageiros / quando desembarcam para ver a pobreza da terra (...)”  (Poema do Mar. In Ambiente, 1941).
Fecho este àparte, que não correspondeu em parte maior ao que pretendia, e volto a  recentrar o caso do Arquipélago de Cabo Verde, numa perspectiva mais geral, ancorando-me desta feita, em abrigos mais seguros na ilha / mar / veleiro / falucho, plasmados nos textos/poemas dos poetas do antanho das ilhas e mesmo  em alguns ensaios deixados pelos pensadores e investigadores da fenomenologia ilhoa.
É generalizada a convicção de que foram e são os Homens de/e da cultura, que a seu modo, com os dons e os instrumentos que à época, o seu saber, e os meios que existiam lhes proporcionaram, os que mais reflexivamente anotaram e registaram o que aconteceu ao “estar” e ao “ser” do cabo-verdiano, modelados pelas pedras duras e secas destas ilhas atlânticas.
Para iniciar, apontaria um caso que faria supor, pelas razões que a seguir se explicam que disso ou, desse “mal” não “padecesse.” Trata-se do poeta luso-cabo-verdiano, Daniel Filipe. Nasceu em 1925, na ilha da Boa Vista e faleceu em Lisboa, ainda novo, aos 38 anos de idade, em 1964. Na antiga Metrópole, Daniel Filipe fez os seus estudos e foi funcionário do Minstério do Ultramar.  Mais conhecido, nos tempos do Estado Novo, pelo seu célebre e muito declamado poema, « A Invenção do Amor». Daniel Filipe, apesar da brevidade da sua vida, ainda assim, deixou uma significativa obra poética. 
De acordo com os seus biógrafos, entre os quais, destaco e cito Manuel Ferreira, (vide «No Reino de Caliban» Vol. I 1975) é quem nos informa que Daniel Filipe, de seu nome completo, Daniel Damásio da Ascenção Filipe, chegou criança ainda – “com cerca de 2 anos de idade” – a Portugal, levado pelo pai, deportado na Boavista, Coronel médico, Gonçalo Monteiro Filipe. A mãe, Rita Maria Ascensão,  natural da  ilha das dunas, ali permaneceu. Seguindo os seus biógrafos, por vontade paterna, cortada foi a ligação materna.
Relevem-me o ter alongado nestas notas biográficas do poeta. Mas isso tem um propósito. Estes dados, ajuntados ao facto de ter saído de Cabo Verde ainda bem criança; “cortado” o cordão umbilical com a terra/mãe; de ter vivido sempre na grande (para nós assim era mensurada) Metrópole, teriam feito dele, muito naturalmente, um poeta que consigo, não carreasse à partida e numa lógica de vivências outras, a “condição” de ilhéu. Mas estranhamente, ou não, o poeta Daniel Filipe, que à ilha não retornou; por conseguinte não a vivenciou; é no meu entender e nos poemas dedicados à terra-mãe ou mais exactamente, à ilha-mãe, à Boavista – um poeta sofrido na condição de ilhéu. O poeta (re)age como se tivesse “petrificada” dentro do sua “poésis” uma condição inexorável de ilhéu interiormente expatriado.
Da obra poética virada para Cabo Verde, distinguem-se as colectâneas: «Missiva» (1946); «Marinheiro em Terra» (1949); «A Ilha e a Solidão» (1957). A evocação da mãe-ilha, atravessada por uma melancolia envolta em saudade, mais um certo sentimento de orfandade por uma infância fora do “habitat” insular, surge inexpectavelmente descritos com o à-vontade de quem disso comungou teluricamente e os (re)lembra merencoriamente.  No fundo, e tal como disse Manuel Ferreira, nestes poemas, Daniel Filipe “retoma a caboverdianidade.” Pois bem, o poema Ilha, a seguir transcrito, traz-nos a lembrança/saudade, que imagina da ilha, “distante ainda que não parta!” Como que numa espécie de exercício de reminiscência, assim fala o poeta: “Ilha, no azul líquido é somente /um ponto anónimo da carta./ Ô minha fala inconsequente! / Saudade morna do ausente, / distante ainda que não parta! / O horizonte é linha de água / por estrelas-peixe enodoada. / Se me recordo em bruma e mágoa,/ à solidão da ilha trago-a /dentro de mim petrificada.”(A Ilha e a Solidão, 1957)
Atente-se nos dois últimos versos, “à solidão da ilha trago-a / dento de mim petrificada” E aqui sugerido o insular inexpugnável do seu “eu,” intimamente exilado. Mais, essa sua parte insular leva-o a descrever as aventuras e as desventuras da pesca da baleia assim, como quem as tivesse vivido a partir dos campos e da orla marítima, da pequena ilha. O poema/narrativo: Romance de Tomasinho-Cara-Feia assim no-lo assevera: “Farto de sol e de areia, / que é o mais que a terra dá, / tomasinho-cara-Feia, / vai prá pesca da baleia. // Quem sabe se tornará? // Torne ou não torne, que tem? / Vai cumprir o seu destino./ só nha Fortunata, a mãe,/ que é velha e não tem ninguém, / chora pelo seu menino. // Torne ou não torne, que importa? / Vai ser igual ao avô. / Não volta a bater-me à porta; / deixou para sempre a horta,/ que a longa seca matou. / Tomasinho-Cara-Feia, / (outro nome, quem lho dá?) / Farto de sal e de areia, / foi prá pesca da baleia. / - E nunca mais voltará.” (A Ilha e a Solidão, 1957).
Curiosamente, a faina da pesca da baleia, precisamente o acontecimento que acabou por ser a primeira grande “viagem” que “quebrou” mais generalizadamente, o tal isolamento cósmico do ilhéu cabo-verdiano. Marcou por isso e de certa forma, a ruptura, o acrisolamento ilhéu até então do “cabo-verdiano anónimo,” dentro do casulo que era a terra/mãe. E foi também através da pesca da baleia, que a primeira grande leva de emigrantes cabo-verdianos “aterrou” clandestinamente ou não, em solo americano, nos meados do século XIX.
 Posto isto, como “húmus” relevante de parte da sua poética, coloca-se a seguinte interrogação: Será que Daniel Filipe teria carregado no seu ainda incipiente «ethos» materno insular – arquétipos ilhéus – que poderão ter imbricações naquilo que se entende literariamente por reminiscências platónicas? Possivelmente.
Outro nome destacado da Literatura cabo-verdiana é Manuel Lopes (Ilha de São Vicente, 1907, Oeiras, 2005). Este sim, com uma prolongada e ampla vivência de ilhéu. Que até se alongou curiosamente, quando transferido profissionalmente, para a ilha do Faial nos Açores.
Manuel Lopes enquanto poeta e no “cerco” da ilha, ou melhor, ilhado física e psicològicamente, transpôs e interiorizou o fenómeno de forma muito clara e em textos diversos. Mas antes e em jeito de esclarecimento, vale dizer que sendo Manuel Lopes dos poetas mais representativos da condição islenha, também confessou no poema intitulado, “Poema de Quem ficou” dedicado ao “irmão” viageiro – de outros mares e de muitos mundos, o seguinte: “Eu não te quero mal / por este orgulho que tu trazes, / por este ar de triunfo iluminado/ com que voltas // O Mundo não é maior/ do que a pupila de teus olhos/ tem a grandeza/ das tuas inquietações e das tuas revoltas . // Que teu irmão que ficou / sonhou coisas maiores ainda, / (...) / que aquelas que conheceste... / Crispou as mãos à beira do mar / e teve saudades estranhas de coisas estranhas/ com bosques, com rios, com outras montanhas (...)” In «Cais de Quem ficou» Poemas de, 1936-1944.  É ainda no «Cais de Quem ficou» que se conhece o poeta-ilhéu. É disso figurativo o poema, Écran: “Para lá destas ondas que não param nunca, / atrás deste horizonte sempre igual, / no extremo deste sulco branco sobre o mar azul / (cinzento nos dias de ventania) / que as hélices deixaram, impelindo / o bojo inquieto do vapor, // (sonhos que pairam sobre abismos de ironia; / promessas dum mundo melhor / talvez caminho de algum dia...) // há gritos diferentes, / os olhos cheios de outra imagem do mundo (...) / que a distância do Atlântico dissolve antes de chegar; (...)
E como remate, ele clama e lamenta o não alcance da terra-longe promissora que afinal só existe virtualmente: “Ai este Atlântico triste / que nos deu a nostalgia / dum mundo que só existe / no sonho que ele povoou...” (in: Crioulo e Outros poemas, 1964).
Acercando-nos agora, com especial deferência, do enorme poeta das ilhas, que é para nós, Jorge Barbosa (ilha de Santiago, Cabo Verde 1905- Cova da Piedade, Portugal, 1971) terá sido o poeta que deste lado, dentro da ilha, fortemente sentiu o “cerco” da terra/mar. Igualmente terá sido o poeta que mais problematizou e sintetizou poeticamente a condição de ilhéu. E de tal modo o seu sujeito poético se sentiu apertado pela “cinta do Mar” que evoca o fenómeno em tom lamentoso, ao descrever os  malefícios do “Mar” que atormentam e castigam as gentes e a paisagem do Arquipélago. E assim os retrata e os transfigura no Poema do Mar (in: Ambiente, 1941)
Mas antes de transcrever os versos do poema citado, fazia aqui, e numa espécie de  singela curiosidade, uma pequena nota: Jorge Barbosa era funcionário aduaneiro e foi-o nomeadamente, nas ilhas do Fogo, da Brava, de S. Vicente e do Sal. O facto de ter estado a trabalhar nos edifícios das alfândegas, estes situados, regra geral, entre a terra firme e o “cais-de-ver-partir;” que influência terá tido na sua escrita, dado que é notório que o poeta imprime na feitura de muitos dos seus poemas - de forma pictórica e sinestésica - imagens captadas de um real quotidiano, em que o movimento do porto; o barulho do cais; os apitos e a partida de barcos; as falas dos passageiros, misturadas às dos curiosos que observam “suspirando,” os barcos ancorados e os que partem rumo ao mar alto que são referentes costumados na sua observação poética?
Agora segue transcrito, O Poema do Mar:  “O drama do Mar,/ o desassossego do Mar / sempre / sempre / sempre / dentro de nós! / O Mar! / cercando / prendendo as nossas Ilhas / desgastando as rochas das nossas Ilhas! / Deixando o esmalte do seu salitre nas faces dos pescadores, / roncando nas areias das nossas praias, / batendo a sua voz de encontro aos montes, / baloiçando os barquinhos de pau que vão por estas costas... // O Mar! (...) deixando nos olhos dos que ficaram / a nostalgia resignada de países distantes / que chegam até nós nas estampas das ilustrações / nas fitas de cinema / e nesse ar de outros climas que trazem os passageiros / quando desembarcam para ver a pobreza da terra // O Mar! / a esperança na carta de longe / que talvez não chegue mais!... // O Mar! / saudades de velhos marinheiros contando histórias de tempos passados / histórias da baleia que uma vez virou a canoa... / de bebedeiras, de rixas, de mulheres, nos portos estrangeiros... // O Mar! / dentro de nós todos/ (...) no desejo de viagem que ficou em sonhos de muita gente! // Este convite que de toda a hora/ que o Mar nos faz para a evasão! / Este desespero de querer partir / e ter que ficar! “ In: Ambiente, 1941.
E porque este poema relembra um episódio decorrido, provocado sobretudo, pelos últimos versos: “Este desespero de querer partir / e ter que ficar,” abria agora um parêntesis para registar que na década de 60 do séc. XX, desencadeou-se uma contenda, suscitada pelo polémico estudo «Consciencialização na Literatura caboverdiana» ( Lisboa, edição da Casa dos Estudantes do do Império, 1963) da autoria do também poeta Onésimo Silveira.  Polémica hoje felizmente ultrapassada e com efeitos – a posteriori – algo complacentes da  parte de muitos críticos. Visava o trabalho de Silveira, apoucar e/ou denegrir sobretudo, os poetas Jorge Barbosa, Baltazar Lopes da Silva /Osvaldo Alcântara e Manuel Lopes, apodando-os de “evasionistas” como se, a poesia dita evasionista não se ligasse estreitamente à condição de ilhéu ou não fosse também evasionista, a poesia muito específica do ilhéu, numa quase relação causa/efeito.
Com efeito, e poupando pormenores, sem lugar neste texto, acrescente-se que O. Silveira, ao depreciar como “evasionista,” o grande texto poético em que assomasse o desejo de terra-longe, reflectido no “desejo de querer partir e ter de ficar,” quis ou, pretendeu arredar da literatura cabo-verdiana, a condição de ilhéu, enquanto elemento estruturante da sua poesia.  Fecho aqui o parêntesis.
Ainda um nome reputado da cultura cabo-verdiana, Henrique Teixeira de Sousa (ilha do Fogo, 1919, Oeiras, Portugal, 2006) no seu ensaio «Cabo Verde e sua gente» Imprensa Nacional de Cabo Verde, 1958, situou o aparecimento da forma mais sublimada da nossa música, a morna – a tal que a voz de Cesária Évora, muitos anos mais tarde, havia de dar a conhecer ao mundo – como tendo tido por berço a ilha Brava, no que não esteve desacompanhado, e a qual ilha, nas palavras do próprio Teixeira de Sousa: “ (...) é a terra em que os homens casam com o mar, como no poema de Pierre Loti, a dulcíssima estância da saudade, mercê da vida aventureira e trágica do seu povo, a morna fixou os olhos no mar e no espaço azul, e adquiriu essa linha sentimental, essa doçura harmoniosa que caracteriza as canções bravenses. Não foi por conseguinte infundamentadamente que situei a morna no período primário da emigração para as Américas.”  O exemplo bravense de que nos fala Teixeira de Sousa pode ser alargada às outras ilhas - sem a adjectivação elogiosa e específica à Brava dirigida – pois sugere que a linha sentimental e nostálgica que a morna transporta, conflitua e bi-parte, na sua composição (letra e música) a condição de ilhéu, espartilhada numa permanente tensão, entre a terra-mãe pequena e pobre e a “nostalgia dos países distantes” a terra-longe, o mundo largo, mais propício a aspiração de uma  vida melhor. Logo, Teixeira de Sousa ancorou parcialmente, a génese e o surgimento desta expressão musical, na condição insular cabo-verdiana, isto é no binómio: “querer partir e ter de ficar” aliada ao “querer ficar e ter de partir.”
 As outras expressões de arte em que a “cabo-verdianidade dos traços” se distinguem,  a pintura é sem dúvida a mais figurativa e daí observarmos nas telas e nos lápis de Jaime Figueiredo, Pedro Gregório, Abílio Duarte, Manuel Lopes e Victor Melo - são aqui exemplos tomados ao acaso, de entre os mais antigos - representações pictóricas da condição de ilhéu.
E agora, com a boa intenção de finalizar o texto, que longo já vai, permitam-me que entre, ainda que de forma breve, no universo dito comparativo que felizmente existe para se tratarem estas matérias. Comparando o caso de Cabo Verde a outros espaços ilhéus, referirei o caso dos Açores, que tem sido  bem estudado, por nomes já consagrados  e de entre os quais, pela boa pena do conhecido cronista, filosófo, pensador e especialista nesta matéria, Professor Onésimo Almeida. Os seus diferentes ensaios colocam este tópico de forma autónoma - ou, conexamente distintos -  dos conceitos de “insularidade” e de “identidade.” A obra de Onésimo Almeida vem fazendo uma desmontagem crítica  de muitos juízos feitos e tidos por certos neste campo, por muitos de nós e, como consequência, tirou-nos com a sua reelaboração, algum “sossego pensante.” Para além disso, Onésimo Almeida trouxe um inestimável contributo conceptual e dinamicamente evolutivo sobre a condição de ilhéu, a insularidade e a identidade, fundamentado em asserções e em parâmetros outros, dentro da mundividência filosófca/analítica do assunto e mais afins  com o mundo actual, contrariando o quase tudo que - tido por adquirido – havia assentado arraiais em análises várias.
No seu ensaio «Em Busca de Clarificação do Conceito de Identidade Cultural- O caso açoriano como cobaia» o autor cita Eduardo Lourenço, grande pensador português contemporâneo, a propósito da questão da identidade dos Açores  que se “transformou em autonomismo consciente e voluntário” o que, mutatis mutandis  se pode aplicar ao caso de Cabo Verde, pois que tinhamos de há, pelo menos um século antes da independência, aquilo que o texto de Onésimo Almeida definiu para o  caso açoriano: “ Uma consciência bastante elevada de uma personalidade singular no espaço mais geral da cultura portuguesa; e não se desenvolveu por oposição a esta, mas desenvolveu-se dentro dela.”  Com as muitas diferenças entre os dois casos, Cabo Verde possuía também essa “consciência singular” que se desenvolveu não por oposição também, mas na confluência do conflito gerado pelos dois grupos (europeu e africano) que povoaram o território, na procura de um equilíbrio.   Confirmando que já eramos nação autonomizada, século antes de sermos país.
Mas o interessante é que a identidade colectiva cabo-verdiana, construída ao longo do tempo, no isolamento cósmico do meio do oceano, que acentuou drasticamente a nossa condição de ilhéu; descendendo de dois grandes grupos humanos, o africano e o europeu que aqui aportaram, em terra desabitada; muitos ou, quase todos, forçados a isso, e todos certamente com saudades da terra, do continente distantes e do lar neles deixados. Terá forjado aquilo que o ensaísta Gabriel Mariano (ilha de S. Nicolau 1928. Sintra Portugal, 2002) afirmou sobre a identidade do cabo-verdiano: “Nós somos as nossas raízes, não temos que as procurar.”  Ainda o facto de sermos ilhas um pouco abandonadas, e a nós próprios entregues, somado e bem acrescido ao facto, de os seus habitantes enfrentarem uma luta duríssima contra um imbatível adversário, uma natureza inóspita, uma terra pouco produtiva, terrivelmente seca, de chuvas raras, e/ou de negaças das mesmas, que ora vêm, ora não vêm. A quase nula riqueza produzida. As estiagens e as secas constantes, acompanhadas outrora de crises de fome e do seu cortejo de malefícios e de tragédias humanas e sociais; porém, e apesar de todos estes constrangimentos altamente limitativos e negativos, para uma construção normal de qualquer comunidade humana, e da sua  identidade cultural; a  construção delas, no nosso caso, não se caracterizou de uma maneira geral, «por oposição ou por ressentimento ao grupo maior». Salvo episódios acontecidos em algumas e poucas circunstâncias de revoltas e de ressentimentos historicamente justificados pelas crises de fome.
Se é certo que os episódios havidos e dirigidos foram ao grupo dominador de que também proviemos; também não é menos certo que, no mais e no resto, para além de uma resignação muito cristã, interiorizámos desde os alvores como nação, uma “práxis” social e cultural em relação a nós próprios e em relação a outrem, sob formas não extremadas e não exacerbadas que a condição de ilhéu potenciou..


Artigo publicado no volume: «A Condição de Ilhéu» Concepção e Coordenação de :Roberto Carneiro, Onésimo Teotónio Almeida e Artur Teodoro de Matos. Centro de Estudos e Documentos 22 Universidade Católica Portuguesa. Lisboa, 2017.




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