MESA REDONDA SOBRE O HOMEM CABO-VERDIANO - 6

quinta-feira, 8 de junho de 2017
A indolência cabo-verdiana é fruto do clima e do tipo de alimentação, ou consequência de uma doença de vontade?

Presidente: Abordado este, parece-me que podemos passar ao terceiro tema: «A indolência cabo-verdiana é fruto do clima e do tipo de alimentação, ou consequência de uma doença de vontade?»
Jorge Barbosa: Eu preferi escrever uns apontamentos sobre o que quero dizer. As minhas considerações são consequência da minha experiência, talvez longa e muito sentida, da vida cabo-verdiana. Serão uma opinião muito pessoal.
Indolência cabo-verdiana.
Eis não um problema, mas apenas um caso, variadíssimas vezes trazido à baila das discussões.
Mas existe a apregoada indolência cabo-verdiana?
Na verdade, confesso-o, parece, algumas vezes parece, que essa indolência existe, a avaliar de certos flagrantes de abandono físico e de poupança nos movimentos e nos esforços, que aqui e ali surpreendemos na +população – melhor, em alguns indivíduos da população.
Permita-se-ma, antes de mais, uma rápida digressão, na qual procurarei, sem alargar pormenores e sem entrar nos domínios da Economia Política, dizer o pouco que sei ou que entendo do trabalho como auto-obrigatoriedade, como estímulo e até como sacerdócio e finalidade:
a)    O trabalho, primeiramente, é uma obrigatoriedade que a nós mesmos nos impomos: implica com a nossa sobrevivência; neste caso é luta quotidiana e surge como que em consequência de um anátema bíblico; lá estão as clássicas frases «ganharás o pão com o suor do teu rosto», «comerás o pão que o diabo amassou», etc.
b)    O trabalho resulta duma ambição: com ele procuramos a melhoria da nossa situação económica e financeira, e, assim, é um meio de para adquirirmos, mesmo além das nossas necessidades elementares, o com que possamos tornar a vida para nós o mais confortável possível; é ambição ainda, e sobretudo, quando tem em mira a acumulação de riquezas;
c)    O trabalho é sacerdócio; lembro agora a acção missionária dos que, de há séculos, com sacrifício ou não da própria vida, teimaram e teimam – e quantas vezes o conseguem! – levar aos corações mais distantes a palavra confortadora de Cristo; lembro os homens verdadeiramente abnegados, os homens de ciência e quantos outros que altruisticamente dedicam os seus esforços, as suas vigílias, a sua inteligência, ao bem da humanidade.
Em qualquer dos casos vemos que o trabalho necessita de estímulo. A defesa, pois, da nossa sobrevivência, a ambição, o progresso e o bem do homem são estímulos do trabalho.
Mas, principalmente, o grande, o insistente estímulo do trabalho é a sua justa retribuição pecuniária.
Posto isto, vejamos o caso do simples homem trabalhador destas ilhas. Vejamos o homem da terra, tão cheia, por vezes, de surpresas e desesperanças, o carregador, o pedreiro, etc.; vejamos o homem dos nossos mares, o marinheiro dos nossos frágeis veleiros, o pescador, o catraeiro do Porto Grande, etc. Qual o seu estímulo pecuniário em relação ao esforço que despendem? Não vale a pena estimar a média de tão escassos proventos. Qual a certeza do seu futuro? Um seguro social para a velhice? Um retiro para quando chegar a invalidez? Onde estão eles?
Que estímulo pode ter o homem pobre da nossa terra para o seu trabalho? O único será o da sobrevivência. Mas este quantas vezes não fica anulado por um germe de silenciosa revolta que reside no fundo das almas?
Deste modo, e se, de facto, existisse a apregoada indolência cabo-verdiana, poderíamos talvez explicá-la simplesmente com a falta de estímulo, quase total, que afecta como uma fatalidade (corrigível entretanto) a vida das mais humildes classes trabalhadoras do arquipélago.
Mas continuo perguntando: existe verdadeiramente a tão falada indolência cabo-verdiana?
E o esforço e a canseira daqueles nossos marinheiros e pescadores, daqueles nossos homens de enxada? E a actividade dos homens das nossas marinhas?
E essa labuta do dia a dia das mulheres do povo, percorrendo longos e duros caminhos, num vaivém porfiado, com cargas pesadas à cabeça (produtos agrícolas, lenha, bosta até, este dejecto animal que é também combustível nos lares desamparados)?
E o trabalho das crianças? As crianças pobres também carregam, também trabalham, mais do que brincam. Só por si já é trabalho esforçado o percurso diário da infância rural cabo-verdiana por quilómetros multiplicados de chão áspero e abrasante, a caminho e no regresso da escola, com o estômago vazio.
Mas existe a falada indolência cabo-verdiana? Não haverá mais do que tudo a ausência do estímulo do trabalho?
Insisto neste ponto do meu apontamento.
Vejam o exemplo das carregadeiras do cais de S. Vicente, quando transportam sacos de farinha. Sacos de farinha também é um exemplo. A retribuição deste trabalho normalmente é por volume transportado. Poucos tostões, muito poucos, por cada um. E elas lá vão, num formigueiro humano, veloz e impressionante, levando o carregamento para os armazéns da Alfândega para os dos comerciantes. E voltam, sempre correndo, para levarem mais e mais sacos à cabeça. O estímulo da actividade que desenvolvem tão exaustivamente não será retribuição pecuniária em si, bem irrisória, mas a +possibilidade de multiplicarem os poucos tostões que recebem por cada percurso. Mesmo assim, no fim do dia fatigante, quanto teria recebido cada uma das carregadeiras?
Mas haverá a falada indolência cabo-verdiana?
E esses milhares dos nossos emigrantes espalhados pelos mares e pelos recantos da terra? O que fazem lá fora? Vida aprazível de turista, com itinerário da Cook na algibeira e Kodak a tiracolo? Não. Procurem-nos, mesmo que for na imaginação. Neste momento talvez se encontrem ao leme de algum cargueiro, enfrentando os temporais do Gulf Stream, ou lá bem no fundo do navio, suportando o calor infernal das fornalhas. Talvez se encontrem nos campos da Califórnia lavrando a terra fértil dos estrangeiros, quer faça sol (o sol daqueles lados menos violento do que o nosso) quer seja Inverno (mas o frio por ali é mais castigador que a brisa penetrante do Alto da Cruz de Renda da ilha do Fogo). Talvez se possam ver no porto de Buenos Aires ao serviço pesado da estiva. Talvez nos deparemos com eles, aqui e ali pelo mundo, lutando pela existência, contentes também, gozadores da vida e do amor nos momentos de folga.
Mas haverá a falada indolência cabo-verdiana?
Meus amigos, se toparem com algum cabo-verdiano estirado à sombra de qualquer árvore frondosa, em largada soneca, não o acordem; se o virem na praia, deitado no fundo de um bote, como se tratasse de simples rede de repouso, deixem-no em paz; se passarem por um grupo entretido em biscada barulhenta, não incomodem ninguém. São momentos de todos nós em todas as latitudes.
Se determinado trabalho que se está executando, construção, sementeira, transporte, não dá rendimento, se o pessoal actua com certa moleza, antes de se pensar na preguiça não será demais um exame de consciência no qual o factor salário entre em apreciação.
Mas existe a falada indolência cabo-verdiana?
E esses milhares de insignificantes lavradores, sem posse para o recrutamento dos jornaleiros, trabalhando sozinhos, auxiliados apenas pela família, pelo amanho da nesga de terra que possuem, nas regas, na guarda das hortas, de dia e de noite, sem contar com o carregamento dos minguados produtos que eles mesmos têm que fazer para o mercado distante?
Antes de se falar na apregoada indolência cabo-verdiana, é melhor encarar primeiro a presença de uma passividade resistente, talvez instintiva, surgindo em contraposição a insuficiência dos salários.
Meus senhores, a indolência cabo-verdiana…
Eu não creio nela.
Augusto Miranda: Alguns metropolitanos me têm dito que a apregoada indolência cabo-verdiana é uma lenda e que, por exemplo, em Santiago os trabalhadores trabalham dez vezes mais do que deviam. Eu li em tempos, numa obra sobre O Futuro da raça branca, que o italiano e o irlandês na Europa têm pouca produção, mas vão para a América e passado pouco tempo são tão activos e laboriosos como os americanos, porque a alimentação é outra. Em Santo Antão, e aqui, dizem, e também na Itália: «o saco vazio não se põe em pé».
Baltasar Lopes: Eu concordo com o que disse o Jorge Barbosa e o Sr. Miranda. Suponho que o problema da indolência, inaptidão individual do cabo-verdiano para o trabalho é um problema que hoje seriamente ninguém põe ou, melhor, que ninguém discute. Conheço muito bem esses fados: o fado do estímulo, o fado do salário. Agora o Sr. Dr. Almerindo Lessa põe o problema em termos talvez mais concretos da indolência colectiva, e parece-me que é essa indolência que nós precisamos de considerar.
Júlio Monteiro: O Sr. Dr. Almerindo Lessa para demonstrar a sua afirmação…
Almerindo Lessa: A minha pergunta.
Júlio Monteiro: … a sua pergunta sobre a indolência, citou vários pontos relativos todos à ilha de S. Vicente. Disse verdades que nos custam, mas que são verdades. Isto demonstra, a meu ver, talvez uma falta de vontade administrativa permanente. Mas quem desembarcasse aqui há pouco mais de cem anos, nesta cidade onde há todas as carências, o que é que encontraria? Absolutamente ninguém. Vida, só a das cabras!
Foi com o elemento propriamente cabo-verdiano, miscegenizado, preparado em outra ilhas, que desta terra onde não havia coisa alguma se fez esta cidade: se calcetaram as ruas, se construíram as casas, se lavrou muita terra para o interior, se trabalhou neste porto. Quer dizer: a existência da própria cidade é o desmentido mais formal da indolência do cabo-verdiano. Agora continuamos a ter faltas. Outras necessidades de carácter local que demonstram lentidão, talvez uma falta de vontade permanente no plano superior. Mas a cidade em si, esta obra que nós construímos e que existe, destrói por completo a lenda da tal indolência. Agora sejamos realistas. Nós todos temos razão de sobra para dizer que a nossa produção em trabalho manual ou em trabalho intelectual é inferior àquilo que poderíamos fazer. Se a gente comparar o cabo-verdiano com o madeirense, por exemplo (e digo o madeirense por ser um ilhéu como nós e um ilhéu cuja formação se fez em grande parte como a nossa) não podemos deixar de reconhecer que o madeirense é activo, é empreendedor, é ambicioso, enquanto o cabo-verdiano é mais lento, não tem ambições por aí além e produz menos. Se entendermos as coisas nestes termos de comparação, quer dizer, se tomarmos por ponto de partida e confronto dois povos ilhéus, o cabo-verdiano e o madeirense, não podemos deixar de reconhecer que eles trabalham mais do que nós. Agora, os termos de comparação para serem exactos, deveriam referir-se a duas posições geográficas iguais: povos do mesmo sangue, da mesma raça e colocados no mesmo local. Ora a verdade é que a Madeira, com o clima completamente diferente do de Cabo Verde, tem condições climáticas e económicas diferentes. O povo madeirense está, neste ponto de vista, mais beneficiado. Mas a verdade é que quando o madeirense e o cabo-verdiano saem do seu habitat e se colocam num habitat estranho nós assimilamos esse ambiente e produzimos tanto e tão bom ou melhor do que eles. Portanto a nossa indolência só se poderá aceitar como lentidão na execução de qualquer trabalho, e proveniente de factores climáticos e económicos e ainda daqueles factores sociais que Jorge Barbosa citou.
Baltasar Lopes: Eu talvez substituísse essa expressão por frustração, frustração secular.
Júlio Monteiro: Está bem. Pode ser.
Baltasar Lopes: a nossa falta de um sentido colectivo de actividade resulta de uma frustração secular. Esperanças perdidas nas realizações prementes, elementares. Parece que o mais simples é o mais difícil de conseguir. O cabo-verdiano está farto de ouvir falar de coisas que se não realizam. A certa altura o cabo-verdiano, a meu ver, põe o problema de Montaigne: «À quoi bon!» Para quê? Para quê trabalhar, para quê pensar, para quê? Porque afinal de contas, não se encontra realização. Quer dizer: uma frustração secular e, como causa ou consequência dessa frustração, o nosso fraco espírito associativo, que talvez se explique também pela carência de condições individuais. Não há assistência à iniciativa individual e esta falta frustra-nos.
Teixeira de Sousa: Eu peço licença para acrescentar alguma coisa a este problema. Eu queria perguntar ao Sr. Dr. Almerindo Lessa qual o sentido em que se pode tomar a frase «o exemplo dos escolares da bacia do Sado» dentro do conceito da indolência e dos factores que condicionam essa indolência. Parece-me que o Sr. Dr. Almerindo Lessa liga nesta expressão o factor racial pelo facto de nessa zona de Portugal se encontrar diluído sangue negro. E vamos cair assim no mesmo problema de há bocado da sensualidade ligada à raça africana.
Almerindo Lessa: Evidentemente que, para mim, que me limitei a ser eco e intérprete de uma dúvida ou de uma impressão que os cabo-verdianos deixam sistematicamente à maior parte dos estrangeiros, se eu para tal situação – que pus como hipótese de estudo – tivesse uma explicação biológica ligada à raiz de onde eu próprio provenho, não teria de pôr a pergunta assim. Pois que então essa indolência, a existir, teria a mesma origem que a do homem do Alentejo ou do Minho.
Para eu pôr esta pergunta deste modo teria que admitir outra raiz. Quando eu comecei a encontrar sistematicamente uma referência sobre a indolência dos homens de Cabo Verde recordei-me de uma experiência de leitura colhida por mim nos escolares da bacia do Sado. Em 1937, ao preparar uma tese para um Congresso Internacional de Medicina Escolar e ao estudar os resultados académicos de meia dúzia de anos seguidos, cujo acesso me fora permitido, encontrei como referência quase permanente dos professores dos liceus que ficavam ao Sul do Sado que os estudantes eram mais inactivos, mais preguiçosos e com menor comportamento escolar do que aqueles que viviam acima do Sado, e, como é próprio do espírito humano, eu procurei tentar compreender porquê. Não era fácil encontrar uma explicação (falta de alimentação, maus tratamentos em casa, desfasamento entre a idade mental e o nível das aulas) porque o fenómeno era anual, sistemático e de todas as classes. E como em todos os livros que estudam o homem negro vêm referências psicomentais semelhantes, abstraindo mesmo das condições de casa e alimentação; sabendo eu, da existência de uma raiz negra na bacia do Sado, onde nos séculos XVI e XVII alguns povos chegaram a perder 90% dos fogos e onde a falta de braços e de outra qualquer energia promoveram uma importação de escravos que foram posteriormente libertados e diluídos na população – era admissível, como hipótese de trabalho, que aquela mancha de mau rendimento escolar pudesse ter como explicação a persistência de uma raiz afra. Essa hipótese foi muito criticada, mas foi lembrando-me dela que, ao estabelecer esta pergunta, eu acrescentei, de coração aberto, que, por mim, à falta de outra, eu teria uma explicação de circunstância.
Teixeira de Sousa: A propósito da indolência eu queria apresentar dois exemplos e serei muito breve. Suponho que só a geografia humana poderá explicar todos estes problemas. E a geografia humana inclui várias ciências subsidiárias, uma delas a própria Biologia. Mas vamos aos dois exemplos.
É conhecido, e vários autores a isso tem referido, o destino dos duros ingleses que colonizaram na América os estados da Nova Inglaterra e as ilhas Bahamas. Enquanto aqueles que se fixaram nos estados da América do Norte conseguiram de facto criar ali mais uma civilização esplendorosa e rica, os ingleses da mesma cepa que colonizaram as ilhas Bahamas fracassaram. Pode-se mesmo dizer que esses ingleses que se fixaram no mar das Caraíbas, por exemplo em Jamaica, transformaram-se em menos de cem anos, por tal forma que foram chamados «pobres trastes humanos». Tornaram-se indolentes e carregaram-se de todos os vícios. Choveram as explicações. Diziam uns que por causa do clima tórrido, morno; outros por causa da alimentação pobre; outros ainda explicaram isso pelo alcoolismo (um autor, cujo nome não recordo, chegou a dizer que um domingo em Jamaica matava mais gente do que todas as doenças ali reinantes – porque aos domingos se embebedavam.); outros ainda explicaram essa quebra de energia pela organização económico-social, em franca decadência pela derrocada da cana do açúcar.
Outro exemplo, fruto da minha experiência, foi o que eu pude observar na nossa longínqua ilha de Timor. Quando ali cheguei fiquei chocado com o aspecto apático, miserável, da população da cidade de Díli e de quase todo o litoral. Era só eu e a minha mulher. Pois foi preciso meter em casa quatro serviçais para poder comer e ter a casa arranjada. Porque um só se ocupava da cozinha, outro limpava a casa e servia à mesa, outro apenas acarretava água e o quarto apenas ia buscar lenha. E cheguei à conclusão de que com menos não me safava. Depois conheci a montanha e contactei com outros povos mais vigorosos, mais enérgicos, fisicamente mais compostos. E foi na montanha que pude ver coisas interessantes do folclore de Timor, porque em Díli nem sequer tinha ouvido uma gargalhada. Foi na montanha que ouvi o coro das cabeças cortadas e a dança guerreira, que é ao mesmo tempo de uma violência e de uma poesia enormes. Passado pouco tempo eu tinha a chave da explicação do comportamento do timorense do litoral e daquele que vive a mais de 800 metros de altitude. Era o clima, sim, pela sua acção indirecta (no litoral há muita malária, muita parasitose intestinal, muita bouba e outras doenças próprias de uma ilha que fica a 8 milhas do Equador, mas que praticamente eram inexistentes na montanha). No litoral o regime alimentar era mais pobre do que o da montanha, apesar de ser precisamente na zona litoral que os terrenos são mais férteis e onde é possível duas culturas de cereais por ano, mas a população cultiva apenas um pedaço exíguo de terreno, porque não tem energia para cultivar mais. Portanto, passa fome porque as doenças que carrega não lhe permitem executar o labor da agricultura, e na montanha, com terrenos mais acidentados, mais sujeitos à erosão, o regime alimentar é superior. O autóctone da montanha cultiva em larga escala porque é mais saudável. Simultaneamente, penso que a indolência cabo-verdiana não é fatalismo racial; podemos mesmo dizer que não se trata de um fatalismo climático, porque este pode ser vencido pelo homem e só quando não é vencido é que produz a indolência e outras fatalidades.

In CABO VERDE – Boletim de Propaganda e Informação, Nº 101 – Fevereiro de 1958

0 comentários:

Enviar um comentário