MESA REDONDA SOBRE O HOMEM CABO-VERDIANO - 8

terça-feira, 13 de junho de 2017
As formas elementares de cultura da terra são consequências de um fatalismo, da falta de meios materiais ou da impreparação técnica dos agricultores?

Presidente: Parece-me que podemos agora passar à discussão da outra alínea: «As formas elementares de cultura da terra são consequências de um fatalismo, da falta de meios materiais ou da impreparação técnica dos agricultores
Júlio Monteiro: Nós possuímos culturas a que chamarei de sustentação, por exemplo, o milho, e culturas a que se poderá dar o nome de culturas de riqueza, por exemplo, o café. Embora ambas produzam riqueza, a nossa cultura básica é o milho.
            Nada há mais fácil de cultivar. Abrem-se buracos na terra na altura das chuvas, metem-se uns grãos e tapam-se até com o próprio pé. Tempos depois ajeita-se a terra; se as águas são boas haverá outras ervas daninhas a retirar, e algum tempo depois cortam-se as flores, se for caso disso, e faz-se a colheita.
            Porque cultivamos o milho, e não qualquer outro produto?
            Eu suponho que é um acto de ciência empírica profunda por parte do povo. Chove em Cabo Verde nos meses de Agosto, Setembro, Outubro (se chover) e Novembro. Em Dezembro e Janeiro colhe-se o milho. Não há mais chuvas no arquipélago. Não creio que seja possível arranjar outro produto que em tão pouco tempo e com tão pouco trabalho possa dar-nos o suficiente para nós nos alimentarmos durante o resto do ano. O que sucede em Cabo Verde sucedeu na América do Norte. Por isso é que La Blache chamava ao milho o viático das civilizações: ia à frente o pioneiro, atirava uns grãos à terra e pouco tempo depois tinha uma espiga leitosa que ia comendo e que ia reproduzindo.
            É claro que este sistema de o milho ser o nosso alimento básico tem inconvenientes, mas eu não conheço nenhum outro produto capaz de produzir o milagre que eu já vi em Santiago: lançar um grão à terra e quatro meses depois obter desse grão 700 ou 800 grãos! É claro que, sendo uma cultura tão fácil de fazer e sendo as propriedades em Cabo Verde pequenas propriedades, não é possível, nem creio mesmo que seja necessária, uma forma diferente de cultura. Não se podem empregar máquinas, não há possibilidades.
            Baltasar Lopes: Até nem seria recomendável por causa da erosão.
            Júlio Monteiro: E tudo indica que seja essa a forma mais lucrativa da cultura do milho, que nós não podemos, pois, chamar elementar no sentido de pouco produtiva.
            Outro tanto não sucede, porém, com as culturas ricas, como o café, que é cultivado, de um modo geral, pelo menos em Sotavento, por forma imprópria. Há cafeeiros velhos cuja substituição se impõe, mas que não se faz. E não se faz porquê? Aqui surge um dos elementos de explicação indicados pelo Sr. Dr. Almerindo Lessa: a falta de meios materiais. Um pé de café leva cerca de cinco anos a produzir e durante esses cinco anos o agricultor não pode prescindir dessa produção, para obter mais algum dinheiro, para pagar os impostos e melhorar as suas condições de vida. Claro que o poderia fazer e o interesse do Governo era que o fizesse, porque melhoraria a produção e, consequentemente, aumentaria a sua riqueza. No Brasil o Senador Chateaubriand está liderando uma campanha para a substituição obrigatória dos cafeeiros velhos. Mas é claro que lá as condições financeiras do agricultor são diferentes.
            Quer dizer: enquanto que para o milho não considero elementar o nosso sistema de produção, considero-o para outros produtos mais ricos. A situação mantém-se porque para o agricultor não existem meios proteccionistas. Já contei há várias pessoas uma história que parece anedota. Um amigo proprietário em Santa Catarina, que tem a mania de estar sempre doente, pediu-me que lhe comprasse vinte frascos de Urodonal. Fui à farmácia e disseram-me que só havia dezasseis frascos. Informei-o e ele mandou-me então o seguinte telegrama: Compre-os todos antes que a SAGA1 os requisite. Achei graça e perguntei-lhe porquê. Respondeu-me: «Senhor Doutor, eu só conheço o Governo nas seguintes ocasiões: quando me manda fazer o manifesto agrícola; quando me obriga a pagar a contribuição e quando me requisita o milho para vender à SAGA». Ora um homem nesta disposição está sujeito a toda a espécie de infelicidades, não espera uma assistência social ou agrícola. Nós precisamos daquilo a que se poderá chamar o crédito agrícola democrático. Já então modificaríamos as formas de cultura e haveria razão para esperar uma melhoria das condições de vida locais.
            Impreparação técnica dos agricultores? Nunca tivemos escolas elementares de agricultura; tivemos só escolas de ensinar a ler. O agricultor tem os conhecimentos elementares empíricos, que passaram de geração em geração. Convinha efectivamente tê-los melhor. Mas convinha que simultaneamente se lhe dessem as possibilidades de pôr em prática esses conhecimentos. É claro que me dirão: mas então é o Governo que há-de vir, como bom pai, fornecer esses elementos? Se a instrução – refiro-me à instrução no seu sentido mais geral –  compete ao Governo, também os organismos de crédito destinados a acudir e a melhorar situações de carácter geral, como os de uma Agricultura, têm sido em toda a parte organizados e criados pelo Governo. Portanto, não é pedir de mais que se crie um crédito agrícola, que se criem escolas de Agricultura, que se nos proporcione a possibilidade de não deixar ir para o mar nenhuma gota de água que cai e de trazer à superfície toda a água que temos no subsolo. É esse o nosso problema!
            O Sr. Doutor falou em fatalismo e diz que lhe parece que esse fatalismo é gerado de fora para dentro. A fragmentação de Cabo Verde em ilhas é o nosso pior mal. A isso podemos chamar, de facto, um fatalismo. Mas fatalismo geográfico.
            Impede-nos uma infinidade de coisas e, inclusivamente, a de fazermos uma agricultura mais progressiva e mais racional. A génese desse fatalismo não está em nós, está no nosso condicionalismo geográfico. Fatalista não é o cabo-verdiano. Quem conhece qualquer das ilhas agrícolas, como Santiago ou S. Nicolau, vê que mal caem as primeiras chuvas toda a gente se precipita no trabalho e não fica um palmo de terra por cultivar. E quando sucede algumas vezes ficarem terras por cultivar, como em Santo Antão, depois da crise de 42, é, justamente, por falta de braços porque os homens morreram na crise, e por falta de socorro; porque eles não tiveram milho para as sementeiras, porque ninguém os ajudou.
            Baltasar Lopes: Principalmente para uma operação mais custosa que é a monda.
            Júlio Monteiro: Hoje a situação é um pouco diferente. A SAGA abona sementes, a SAGA abona mantimentos. Não faz como faziam os agiotas que emprestavam milho ou dinheiro para receberem depois o dobro.
            Baltasar Lopes: Isso até deu lugar a um instituto jurídico. Em S. Nicolau era chamado «o prazo».
            Júlio Monteiro: Eu suponho não haver fatalismo numa população como a de Cabo verde que se lança ao cultivo da terra sabendo mesmo que esse cultivo é precário, que pode faltar a chuva de Outubro e sabendo mesmo que tudo quanto semeia pode redundar em palha. Não se pode falar, portanto, em fatalismo se não for no seu sentido geográfico. Esse sim, esse existe. Condiciona-nos muitas possibilidades, inclusive as da Agricultura.
            Presidente: Alguém mais deseja falar sobre este ponto?
            Daniel Tavares: Realmente várias pessoas decididas e dispostas a gastar dinheiro tentaram a Agricultura, mas ao cabo de um, dois anos, desistiram porque a falta de chuvas inutilizou todo o seu esforço. Um amigo meu meteu de uma vez 100 contos numa empresa (o que para Cabo Verde é já uma quantia importante) e recolheu da primeira vez aproximadamente um décimo, no segundo ano não tirou nada, no terceiro desistiu. Falta de chuvas! Condições climáticas!
            Além disso, e isto pode explicar a tal indolência, se formos ver o que se passa em Santo Antão, região muito montanhosa, de declives, observamos que o homem faz uma parede de dois a três metros de altura para conseguir apenas um pequeno terraço de meio metro de largura. Depois verifica que, ao cabo do trabalho que fez, gastou 100 para obter o valor de 10. Chega a ser espantoso como é que o cabo-verdiano trabalho tanto para nada. O trabalho é gigantesco! Além disso, não temos condições de trabalho.
            Vou dar um exemplo pessoal: Pretendi cultivar café numa herdade de meus pais e fiz uma boa cultura. Depois, como os terrenos estivessem esgotados pela erosão, quis em certa altura adubá-los. Como? Importar adubos de fora? Mas eu sabia que na Brava havia grandes quantidades de guano, que os franceses vinham buscar antigamente. Com esforço, com trabalho, com muita canseira consegui comprar 4 toneladas que mandei para a minha terra. Aquilo devia ser aplicado em determinado período.
            Pois bem: 4 meses depois ainda lá estava. Foi necessário dividi-lo em pequenos lotes de 20 quilos, que foram depois transportados à cabeça de mulheres, pagando cinco escudos por cada pequena carga. Enfim, aquilo custou-me tanto que desisti. Impossibilidade! Não há estradas. Não há um metro de estrada na minha terra. Não temos condições de trabalho. A nossa indolência é mais aparente do que real. Só agora é que se esboçou a primeira estrada em Santo Antão. Está esboçada! Se será feita ou não…
            Júlio Monteiro: Assinou-se hoje o contrato para a sua construção.
            Daniel Tavares: Ah, sim?
            Baltasar Lopes: Portanto já não vai continuar a discutir-se a estrada…
            Daniel Tavares: Temos falta de meios materiais. Temos falta de preparação técnica.
1 A SAGA, abreviatura que designa o Serviço de Aquisição de Géneros Alimentícios, foi criada pelo Decreto nº 31880, de 8 de Fevereiro de 1942. Pela sua acção o abastecimento de géneros de primeira necessidade deixou de estar à mercê do comércio importador, que com ele enriquecia nas ocasiões de crise, e passou a ser um serviço público como qualquer outro. Os lucros auferidos são aplicados na constituição de um fundo de reserva para épocas de crise e em subsídios de interesse geral.


In CABO VERDE – Boletim de Propaganda e Informação, Nº 103 – Abril de 1958

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